__________________________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________________________ MUCABA ANGOLA C.CAÇ.2613: MEMÓRIAS SOLTAS DE UM EX-COMBATENTE 4

2005-12-20

MEMÓRIAS SOLTAS DE UM EX-COMBATENTE 4

FUGA ADIADA
Já dentro do táxi e a caminho de Santa Apolónia, fui tentado a não voltar para o barco, como tinha dito ao motorista o que ia fazer ele que ta bem já tinha feito a tropa em África, disse-me logo, eu se fosse a si não ia, olhe que aquilo é um inferno, os que vem de lá com vida, estão mortos por dentro.

Só que as pessoas não se apercebem, fica-nos tudo aqui, apontado para a cabeça, eu que me farto de correr Lisboa com este carro nas mãos, conheço-os logo assim que entram no táxi, sem que eles mesmo se apercebam, parecem mortos vivos, e quando lhes dá para falar despejam tudo cá para fora como se fossem um gravador, ficam aliviados por umas horas.
Olhe eu cá, estive na Guiné em 1961 e vim 1963, tinha uma cabeleira de fazer inveja, agora olhe para mim tenho meia dúzia de cabelos, ficaram todos na Guiné. E de noite? De noite durmo meia hora, e quando durmo sou assaltado por todos aqueles fantasmas que estão cá dentro, pretos brancos, eles não poupavam ninguém.

Uma vez ia numa velha GMC sabe o que é, não sabe? Respondi afirmativamente, saltou um gajo à picada com uma bazuca, e lançou a granada para o carro, enfiou mesmo pelo motor, foi uma coisa tão rápida, que nem deu para saltar do carro, acordei no outro dia no Hospital com as duas pernas em gesso, eu e outros seis vinha-mos atrás, o condutor e o furriel que ia no banco da frente ficaram feitos em fanicos.

Bem... chagamos a Santa Apolónia, quer que espere por si para o levar de volta ao barco, ou vai cavar? Daqui ao aeroporto é um saltinho se tem dinheiro e um passaporte... o Brasil também fica logo ali, disse rindo às gargalhadas como se aquilo fosse uma boa piada.

Não, espere aqui por mim que vou só buscar as malas e volto já. Dentro da estação fui novamente assaltado pela dúvida de ir ou não ir, e a conversa do taxista, não me ajudou nada, " olhe que aquilo é um inferno " não era coisa que eu não soubesse já como era pois tinha feito o estágio de enfermagem no Hospital Militar, no serviço de paraplégicos, e já estava farto de ouvir aquelas histórias, contadas pelos próprios que as tinham vivido.

Levantei as malas do depósito de bagagem e voltei para o táxi, então? perguntou o taxista, vamos para o barco, respondi eu, bem... você é que sabe, espero que não se venha a arrepender retorquiu, o táxi arrancou e até ao cais nenhum de nós disse uma palavra, chegamos rapidamente, paguei a corrida retirei as malas, e despedi-me dele com um, até qualquer dia... Ele arrancou com o a táxi e ainda o ouvi dizer, oxalá não se arrependa, mostrei o papel que me tinha autorizado a sair, ao P.M. que estava na entrada para o cais, e ainda fui apanhar os outros que estavam a subir as escadas de acesso ao navio, subi carregando as malas, entrei naquilo que iria ser a minha casa durante oito dias, arrumei as malas no camarote que me tinham destinado no porão, e subi à amurada para um adeus a Lisboa, pois não tinha lá mais ninguém, apenas uma namorada que não podia ir porque tinha que trabalhar. Deitei um último olhar ao Cristo Rei, um olhar que poderia ser o último, pois não sabia se o voltaria a ver.